10.7.05

O Best Of de Mafalda Arnauth visto por João Miguel Tavares

Quando Meus Lindos Olhos se começou a escutar nas rádios em 1999, uma suave brisa desarrumou o fado – nada voltaria a ser como antes. Verdadeira pedra angular daquilo a que muitos têm chamado “novo fado”, os seus três minutos – tão belos quanto despretensiosos – aproximaram da canção de Lisboa uma multidão de gente que lhe era avessa, e deram a conhecer ao mundo uma jovem fadista de 25 anos: Mafalda Arnauth.

Mafalda é a primeira voz que chega atrasada ao fado e recupera o tempo perdido num piscar de olhos. Sem qualquer ligação ao género, descobriu-o no primeiro ano da universidade, rompendo com a tradição do bairro típico e da herança familiar. Para se ser fadista, afinal, bastava talento, disponibilidade interior e o desejo de desdobrar em canção as dobras dos sentimentos. Pela sua própria clausura, o fado deixou-se cair muitas vezes numa ditadura sanguínea, que excluía como “não genuíno” tudo o que vinha de fora. Mafalda vinha de fora, mas cantava como se sempre tivesse estado dentro.

Claro que ela não foi a primeira a fazê-lo – mas foi a primeira a ser bem sucedida não só apesar disso, mas também por causa disso. De facto, em vez de ser uma dificuldade, o “vir de fora” transformou-se numa mais valia. O novo fado de Mafalda era realmente novo, possuía a doce leveza da inocência – estava ausente o medo de ofender a tradição – e recusava enclausurar o género na guitarra gemida e no poema chorado. O tema O Sol Chama por Mim era, nesse sentido, todo um manifesto de intenções: “Despi o manto negro da tristeza/ Das noites que cantei p’ra não chorar”. Em vez das lágrimas, “um novo fado de alegria”. E concluía: “é dia e o sol chama por mim”. Mafalda abria as janelas do fado e deixava a luz invadir a casa.

O disco foi um sucesso, e com ele o fado deixava de ser uma canção exclusiva de turistas, bairristas e marialvas. Chegava, por assim dizer, à classe média. Popularizava-se. Por causa da voz de Mafalda? Sim, por causa da sua voz. E também por causa da sua imagem. E da sua simpatia natural. Mas, sobretudo, por causa de um aspecto tantas vezes esquecido e injustamente menorizado: as suas composições. Se hoje em dia abundam as fadistas, Mafalda Arnauth continua a ser a única que compõe a maior parte dos seus fados. Quer dizer: é através das suas próprias composições que melhor se exprime, e elas são essenciais à originalidade do seu trabalho.

Recusando desde sempre insistir no repertório de Amália e recorrendo muito pouco aos fados tradicionais, Mafalda é responsável por um conjunto de temas que enriquece o património do fado naquela que é a sua maior fragilidade: a capacidade de renovar o seu acervo melódico. De facto, se não há falta de vozes, continua a haver uma enorme falta de compositores – por assim dizer, sobram as Amálias mas tardam a aparecer os Alain Oulman. Embora criticada por quem considera pecado a sua aproximação à música ligeira portuguesa – esquecendo que foi esta música que produziu algumas das mais belas canções dos anos 60 e 70 –, Mafalda tem ajudado a que o fado não fique perpetuamente a morder a sua própria cauda. E esse é um contributo inestimável.

Apenas passaram seis anos e três discos – são certamente muitos os fados que Mafalda Arnauth ainda encerra dentro de si. O que está para trás já lhe garante um lugar de relevo na História do fado. O que está para a frente é um mundo de possibilidades à espera de serem concretizadas, uma constelação de canções que aguardam a voz de Mafalda para se iluminarem por dentro. Nós estaremos cá para ver, para ouvir, para saborear. O nosso envelhecimento é certo – o seu fado tudo tem para continuar novo. Como no primeiro dia, como no primeiro verso: “Meus lindos olhos, qual pequeno Deus...”

João Miguel Tavares