Não fosse ainda perguntarem pelo meu estado de saúde, depois da visita a Angola, talvez já nem fizesse sentido deixar aqui umas palavras sobre esta viagem. Mas definitivamente, parece-me tão redutor saber-se apenas que a comitiva sofreu um percalço gastronómico numa viagem tão especial, que decidi que mais vale tarde do que nunca!
Efectivamente, mesmo com todas as recomendações respeitantes a vacinas e cuidados a ter, é caso para dizer que “o bicho nos pegou a todos”… nem vale a pena entrar em pormenores, porque, com forças recuperadas existem muitas mais imagens interessantes para vos partilhar.
Incontornável, é precisamente o primeiro impacto que qualquer país em Africa nos causa, e que a mim em particular, me faz sentir em casa… O calor imenso, que leva a maioria a refugiar-se no primeiro ar condicionado que encontra, desperta em mim um bem estar incrível. O calor, os aromas da terra, o sol brilhante, a liberdade das roupas, principalmente para quem sai de um Inverno frio e desmotivador, inspira-me alegria, liberdade de movimentos e faz com que a minha integração no que me rodeia seja inteira e natural. Benditas sandálias, tecidos de linho e toda a cor que quisermos celebrar.
Claro que assim que entramos no autocarro que nos conduz ao hotel percebe-se que o conceito de “liberdade” é muito relativo. O caos na circulação automóvel, num fervilhar indomável, leva-nos a agradecer termos quem nos leve ao destino. E não existe dia em que ele não aconteça, impiedoso e de forma absolutamente indisciplinada.
Mesmo assim, Luanda impera por entre a confusão do trânsito e a multidão diária que nela acontece. Finalmente pude entender o fascínio de tantas e tantas pessoas porque é quase impossível não vermos a beleza desta cidade, mesmo por entre os estragos causados pela chuva recente e ultrapassável e, mais impiedoso, o monumental estrago de uma guerra que tardou em terminar, mas que finalmente se começa a desvanecer da vida dos angolanos e a deixar respirar e transparecer a beleza e a alma deste povo.
Completaram-se 4 anos do fim da guerra no dia da nossa chegada a Angola, a 4 de Abril de 2006 e foi impossível não referir esta conquista no dia da minha actuação. Poder estar presente num momento tão significativo foi fortíssimo. O contraste da minha vida “santa”, num país apesar de tudo pacífico e tranquilo como é Portugal, com os olhares ainda vazios e torturados de tantos Angolanos, fez-me render à evidência de tudo o que tenho a agradecer pela vida que tenho e tomar consciência de que não podemos passar impunemente por realidades tão duras e seguir em frente, indiferentes sem que a nossa vida confortável seja sequer beliscada.
Talvez o momento que melhor traduz esta sensação se tenha passado precisamente numa das ocasiões de maior alegria para todos nós, numa gloriosa ida à praia, onde o mar nos lava de todas as preocupações, a atenção de todos nos faz sentir “reis e senhores” e o quase luxo de um bocado sossegado e preguiçosamente desfrutado só foi quebrado por uma criança que apareceu quase no fim da tarde a pedir, provavelmente dinheiro, ou qualquer outra coisa. Além da fome evidente, tinha marcas de queimaduras e o olhar vago e dolente, com um sorriso lânguido demais para ser simples alegria. Denunciava claramente o consumo de qualquer tipo de droga, quem sabe como ajuda às queimaduras das mãos ou quem sabe porque motivo.
A impotência que nos invadiu, por tantos e tantos motivos, foi suficiente para nos devolver à realidade do que nos rodeava. Dar-lhe de comer foi uma das maiores sensações de frustração que tenho experimentado, pela facilidade óbvia demais que isso representava para nós e pela pergunta difícil que ficou no ar: e amanhã, quem estará cá? E afinal, que pode e deve cada um de nós fazer?
E mais duro ainda, como é possível a miséria profunda existir por entre o luxo declarado e os sinais evidentes de riqueza de tantos? Evitando polémicas, não falo sequer de quem tem riqueza suficiente para cobrir toda a fome do mundo… A cada um a sua consciência e a cada um também o dever de lutar pelo melhor para si, sendo este um assunto que eu, certamente não posso esclarecer. Falo sim, de mim própria, do que eu posso partilhar muito além do pão para a boca, e muito mais de como lutar para conquistar o que é nosso de direito, por esforço e dedicação, por mérito. Sempre que me pergunto porque não existe maior generosidade também me pergunto porque tanta gente não se esforça verdadeiramente por ter…
Vim-me embora sem respostas mas agora já não posso dizer que desconheço, que não sei o que anda pelo mundo, o que me rodeia, o que sobrevive enquanto eu tenho a possibilidade de viver. Talvez não seja só em Luanda que isto pode ser descoberto, mas quando a beleza imensa e a dor profunda andam de mão dada é impossível não ver…